I. Enquadramento
Quando abordamos a temática da proteção de dados é importante ter presente que a mesma tem sido objeto, nos últimos anos, de uma tutela, cada vez mais forte, por parte do Direito.
Desde a sua recolha, para a qual é necessário o consentimento expresso e esclarecido dos titulares, prosseguindo durante a vigência dos contratos, fornecedores de bens e serviços, ajustaram os seus processos de forma a assegurarem que o tratamento dos dados é efetuado no estrito cumprimento do estipulado no Regulamento Europeu de Proteção de Dados (RGDP), em vigor desde 25 de Maio de 2018 – Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho e sua respetiva lei de execução – Lei n.º 58/2019, de 08 de agosto e pareceres emitidos pela Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD).
Decorridos menos de dois anos, durante o estado de emergência, por imperativos de saúde pública, foram suspensos vários direitos, entre os quais o da proteção de dados pessoais, como se pode constatar na declaração do Comité Europeu para a Proteção de Dados (CEPD) proferida em 19 de março do corrente. No ordenamento jurídico português esta mesma situação está expressamente prevista na alínea h) do Artigo 4º Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de abril disponível aqui.
Importa refletir nos desafios que decorrem, agora, no contexto de desconfinamento, com a subsequente necessidade de gerir o aumento do risco de contágio, por um lado, e adotar, por outro, medidas que permitam a retoma gradual da economia.
II. Contexto Laboral
No que, concretamente, se refere ao regresso dos trabalhadores à atividade laboral nos estabelecimentos das entidades patronais, serão implementadas diversas medidas, nomeadamente de natureza sanitária, em conformidade com as indicações da Direção Geral de Saúde, contudo neste artigo abordo uma das medidas que mais dúvidas tem gerado e que se refere à possibilidade de medição da temperatura corporal dos trabalhadores para efeitos de acesso ao local de trabalho.
Esta medida está legalmente prevista no Decreto-Lei n.º 20/2020, de 01 de maio, que aprova medidas excecionais e temporárias no contexto do COVID-19, introduzindo alterações ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, concretamente no que respeita à implementação da norma constante do respetivo Artigo 13º-C, a qual, para efeitos de controlo do contágio/minimização de riscos, possibilita a medição da temperatura corporal dos trabalhadores.
O legislador considera esta medida justificável pelo facto de ainda se verificarem situações de contágio, pela impossibilidade de prever o fim da pandemia, e, consequentemente, necessidade de evitar uma situação de retrocesso ao nível da transmissão do vírus.
Sem prejuízo do exposto, importa ter presente o seguinte:
- É permitida a medição da temperatura, mas não o registo da mesma, só sendo este possível mediante o consentimento do trabalhador. Questiono: este consentimento está na disponibilidade do trabalhador? E em que medida?
- A partir da leitura da norma, fica-se com a ideia de estarmos perante dois momentos distintos: o da medição da temperatura e o do subsequente registo, sendo que apenas este último é considerado como tratamento de dados pessoais carecendo, por isso, de autorização. Sucede, todavia, que a medição da temperatura do trabalhador já consubstancia um tratamento de dados pessoais que implica a obtenção de consentimento, se tal for admissível como suprarreferido.
- Permite-se que na sequência da temperatura possa ser vedado ao trabalhador o acesso ao local de trabalho, mas e depois? O que sucede posteriormente? Que medidas deve a empresa tomar relativamente àquele trabalhador?
- A legislação também não concretiza quem deverá ser o responsável pela medição da temperatura, um funcionário dos Recursos Humanos? Um profissional de Medicina do Trabalho? Não há intervenção das autoridades de saúde?
- Acresce, ainda, que a temperatura elevada não é, de per si, um elemento do qual se possa aferir, sem margem para dúvidas, que a pessoa tem COVID-19, podendo a mesma dever-se a muitas outras situações. E mais: verificando-se casos de infeção assintomáticos, não se poderá criar uma situação de ausência de paridade entre os trabalhadores?
- E quais são, neste contexto, as garantias dos trabalhadores? Onde consta a cabal explicação das condições nos termos da qual a referida medição pode ocorrer?
Ao supra exposto reitera-se que não estão previstas, sequer, as subsequentes diligências a adotar por parte da entidade empregadora, nem o que deve fazer o trabalhador que, para além de ser alvo de uma medida extremamente invasiva da sua privacidade, se vê impedido de executar a sua atividade profissional, e, quem sabe, sujeito a situações de discriminação no contexto laboral.
A CNPD não foi consultada relativamente a esta medida, devendo salientar-se, inclusivamente, que em data anterior à respetiva aprovação, chamou a atenção para a necessidade de salvaguardar o direito à vida privada dos trabalhadores ainda que neste contexto de pandemia.
Esta entidade já manifestou a discordância com a legislação aprovada, tendo aconselhado os trabalhadores a não darem quaisquer informações pessoais sem serem cabalmente esclarecidos quer quanto à necessidade, quer quanto ao tipo de utilização e às medidas que a entidade patronal tenciona tomar em vista da informação que pretende obter, estando já a ser analisadas diversas queixas de trabalhadores relativamente a esta questão.
A este respeito é importante ter presente as indicações do Comité Europeu para a Proteção de Dados (CEPD), disponíveis para consulta aqui, que aborda a problemática do impacto do COVID-19 no tratamento de dados e salienta que não se tem de procurar uma resposta eficaz à crise em detrimento da proteção dos nossos direitos fundamentais, mas sim criar condições para a respetiva coexistência e que, no que concretamente se refere às relações laborais, salienta que deve ser aplicado o princípio da proporcionalidade e da minimização do tratamento de dados pessoais.
Trata-se, pois, de encontrar a melhor forma possível de viver este contexto de pandemia, tendo presente a necessidade de continuar a salvaguardar o respeito fundamental pela dignidade da pessoa humana, pelos seus direitos, liberdades e garantias, sendo um deles o direito à privacidade dos dados pessoais, tal como vem consagrado no Artigo 35º da nossa Constituição.
III. Aplicações destinadas a rastrear pessoas com COVID - 19
Para terminar, uma breve referência às aplicações em desenvolvimento no sentido de permitir “rastrear” pessoas com COVID-19, nomeadamente a “Stay Away”.
A informação acessível sobre esta aplicação é a de que a mesma serve para rastrear, supostamente, de forma anónima, através de “Bluetooth” ou “Wi-Fi”, pessoas infetadas pelo COVID-19, permitindo saber se o utilizador está em contacto com as mesmas e ficando os registos gravados pelo prazo de 14 (catorze) dias.
Na presente data a aplicação ainda está a ser testada e analisada pela CNPD e pelo Centro Nacional de Cibersegurança prevendo-se que o processo de avaliação termine no final deste mês.
Temos, agora, a possibilidade (necessidade?) de construir um futuro diferente, a possibilidade de alterar os moldes nos quais se processa a nossa convivência social, mas a questão que urge colocar é se queremos construir muros, “ficar longe”, ou, pelo contrário, construir pontes, utilizando a nossa inteligência para ultrapassar os desafios que se colocam, como, aliás, temos vindo a fazer, criando alicerces para uma coexistência social mais baseada na solidariedade e na inclusão que na exclusão.